terça-feira, 4 de outubro de 2016

Resenha do livro "Bom dia camaradas", de Ondjaki

ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

O gênero literário “romance” pertence à categoria Prosa, mas há alguns autores que conseguem elevá-lo a um outro nível, criando, assim, uma prosa poética. Ondjaki faz parte desses escritores, Bom dia camaradas faz parte desses textos.

O livro é dividido em duas partes, que, por sua vez, se dividem entre curtos subcapítulos; cada um é iniciado por uma epígrafe, que é a fala de algum personagem do próprio romance no respectivo capítulo; enquanto as duas partes do livro são antecedidas por versos do poeta africano Oscar Bento Ribas — o que já indica o tom poético que a obra terá.

Bom dia camaradas é narrado em primeira pessoa quase que o livro todo, exceto num único trecho, o qual muda para a narração em terceira pessoa, para contar a ação e visão do personagem principal, que se chama Ndalu. Ndalu também é o nome do escritor Ondjaki, Ndalu de Almeida, o que pode indicar, talvez, que se trata de um romance “autobiográfico” (até porque os versos de Oscar Bento Ribas referem-se à saudade).

A história se passa na Angola (também o local de nascimento de Ondjaki), no período pós-colonial, e conta alguns relatos diários do personagem principal, Ndalu, uma criança de classe média, que embora seja jovem, possui um olhar crítico e politizado sobre o seu meio.

O livro já se inicia com uma pergunta do personagem principal ao cozinheiro da casa: “’MAS, CAMARADA ANTÓNIO, tu não preferes que o país seja assim livre?’” (p. 17), o que denota o caráter questionador da criança, além do período de pós-colonialismo português. Porém, António discorda, alegando que “(...) no tempo do branco isto não era assim...” (p. 17).

A resposta de António justifica-se, porque após a libertação do povo angolano, iniciou-se uma guerra civil, guerra que permeia todo o livro. A criança parece não entender a existência da guerra, pois agradece por ao menos o país ser governado por africanos de verdade, não por portugueses. Enquanto, por outro lado, António diz que pelo menos quando eram dominados, havia ordem...

É o retrato de pessoas que não percebem a situação na qual estavam inseridas, pessoas sem esperança, que preferem depender de outrem a criar a própria história. Pode-se dizer que António representa a classe popular (enquanto Ndalu, a classe média — que quer se reerguer e ser livre).

O menino estuda numa escola que possui professores cubanos, que foram para a África para ajudarem Angola, agora que é um país livre, mas em guerra e em construção da própria identidade. O livro, que faz parte da Literatura Africana de expressões portuguesas, possui diversas palavras angolanas, além de trechos escritos em espanhol para representar a fala dos cubanos, o que faz a linguagem da obra ser híbrida.

Esses professores representam a voz crítica do texto, por todo o seu contexto ideológico e revolucionário que vivenciaram em Cuba, como no primeiro relato do menino na escola, quando a professora está triste “(...) porque os alunos tinham sido indisciplinados, e que num país em reconstrução era preciso muita disciplina (...) que nós tínhamos que nos portar bem para que as coisas funcionassem bem no nosso país” (p. 21).

Também é importante ressaltar o espanto dos professores cubanos ao verem que seus alunos possuíam relógios de pulso e calculadoras. Mais à frente, o espanto aumenta-se ao presenciarem a quantidade de comida posta na mesa da casa de um de seus alunos. A primeira hipótese que se pode pensar sobre isso é que os cubanos não tinham acesso a esses objetos e a tal quantidade de comida em Cuba, ou a surpresa em saber a situação da Angola, que estava muito melhor do que esperavam (lembremos: esses alunos, em sua maioria, fazem parte da classe média angolana).

A linguagem utilizada pelo narrador é muito simples e poética, observando as pequenas coisas, como as atos cotidianos, as plantas e os insetos, comentando-as de forma ingênua, como se o escritor realmente fosse uma criança. No entanto, essa observação das pequenas coisas advém da própria monotonia local: “Nós ficávamos aborrecidos com as notícias, porque era sempre a mesma coisa: primeiro eram as notícias da guerra, que não eram diferentes quase nunca (...)” (p. 27).

A ingenuidade da criança é percebida (pela forma e) pelo o que ela aprende no seu dia-a-dia (por exemplo: quem era Nelson Mandela, seu tempo de prisão, a existência da África do Sul, as imposições — barbáries — sobre o povo e sua posição de “inimigos”), acompanhada de seus novos questionamentos e não conformação com o Apartheid, com o racismo, com as notícias, enfim, com a realidade.

A dura realidade local é demonstrada a partir da visita de uma tia de Ndalu, Dada, que mora em Portugal (ela morava na África/Angola, mas se mudou — não se explica o motivo). Logo no aeroporto, vê-se o medo, a força, a repressão e o autoritarismo existente no país, quando as Forças Armadas para a Libertação da Angola (FAPLA) não permitem que sejam tiradas fotos no lugar, “(...) eles não deviam saber que em Luanda não se podia tirar fotografias assim à toa. O Fapla disse: ‘a máquina está detida por razões de segurança de Estado! ’” (p. 40).

Mais à frente, vemos que quando o presidente passa de carro, todos os cidadãos próximos devem sair de dentro de seus veículos, para mostrar que obedecem e que não possuem armas contra as autoridades. É nisto que se mostra a dualidade da criança que, por um lado, questiona-se sobre alguns comportamentos adotados por certas pessoas, mas por outro, considera normais essas imposições autoritárias do governo, por já ter crescido nesse contexto.

Um trecho importante e que consome boa parte do livro é a história do Caixão Vazio. Um boato que estava acontecendo nas redondezas da escola, em que narrava um grupo de bandidos, todos vestidos de preto, com um caixão vazio (em que havia uma caveira desenhada), no qual eram colocadas as crianças. Eles chegavam num caminhão, cercavam as escolas e abusavam das professoras, além de destruírem tudo por onde passavam. Depois se descobre que tudo era uma mentira, mas mesmo assim, toda essa ficção reflete os medos das crianças e do povo, o medo da guerra, da violência e da morte.

Em um diálogo entre o protagonista e a tia Dada, entendemos um pouco da sociedade angolana no período da guerra civil. Quando a tia chega com os presentes, o menino pergunta como ela conseguiu tudo aquilo, se o seu cartão permitia tais aquisições, já que, na Angola, havia cartões de abastecimento, que limitavam e controlavam as compras feitas. Dada, por sua vez, responde que em Portugal pode-se comprar a quantidade que quiser e do que quiser, desde que se tenha dinheiro.

A narração em primeira pessoa já aproxima o leitor do narrador; há personagens que o cativam mais ainda; mas em Bom dia camaradas Ondjaki cria um narrador que conversa com o leitor, como na passagem em que o menino diz que os adultos, às vezes, fazem gestos somente por fazer, mas que não há sentido para fazê-los (e aqui percebemos o olhar ingênuo e pontual da criança). Depois, comenta: “(...) não sei se já repararam que os mais velhos fazem muito isso.” (p. 51).

Além da influência de cubanos em Angola, há, também, a presença de soviéticos no país. Estes dominam até mesmo uma praia, como se fosse deles — isto até nos lembra uma passagem do conto Um passeio na noite (1979), de Alex La Guma, quando os trabalhadores comentam que os brancos pensam em possuir uma praia africana só para eles. Novamente, o protagonista acha comum, assim como estranha que em Portugal o presidente não ande sempre cercado de soldados e que não impõe que todos parem o que estejam fazendo para observá-lo passar. É nisto que se mostra que o personagem principal, embora possua um olhar crítico, não deixa de ser uma criança.

Não só isso, Ndalu conta com naturalidade à sua tia as atrocidades que acontecem no país ou que lhe são contadas, como queimar bandidos vivos, mutilar dedos, injetar água de bateria no corpo, etc. Até acha graça. Também gosta da ideia de terem tirado uma estátua em homenagem a alguém e terem posto um tanque de guerra. É um traço do determinismo, que acostuma as pessoas aos seus respectivos meios (o que, automaticamente, ocasiona a reprodução de ações). Não é à toa que Murtala é um aluno que tem muitas dificuldades, pois é um dos únicos pobres da sala. Reflexo de seu círculo pessoal.

A segunda parte do livro inicia-se diferente da primeira (o que já deixa “dicas” do que acontecerá): enquanto a primeira começa de dia, esta, de noite. É nela que se descobre que o Caixão Vazio não existia e que o carro que eles pensaram ser o caminhão dos bandidos, era o carro do inspetor da escola, que faria uma visita surpresa e que todos deveriam estar comportados e limpos. O medo do caixão vazio reflete o medo das crianças pelo inspetor (elas fugiram da escola); e esse medo reflete o medo da(s) autoridade(s). É interessante comentar que os professores cubanos nem sabiam quem era o inspetor da escola em que trabalhavam, o que lembra os trabalhadores que não conhecem seus patrões e patrões que não conhecem seus trabalhadores.

É importante percebermos como as descrições mudam o tom da narrativa nesse segundo capítulo. Além de ser iniciado à noite, o protagonista passa a acordar mal-disposto (o que é contrário à primeira parte do livro, na qual ele acordava sempre bem disposto). É uma passagem de respostas e descobrimentos, como quando assistem a um vídeo e um professor mostra que o filme é ideológico, que os americanos sempre vencem e nunca apanham. Depois os alunos complementam, dizendo que realmente, a munição dos americanos nunca acaba.

Porém, a maior lição que esses garotos ouvem é sobre o seu próprio país e futuro. Fala do professor Rangel:

(...) Ustedes son jóvenes, pero ya se debem haber dado cuenta de que muchas cosas han cambiado em su país em los últimos tiempos... Las tentativas de acuerdos de paz, La llamada presión internacional, todo eso no pasa solamente en el telediario, va a pasar de verdad en su país, en sus vidas, en sus amistades... Su país está cambiando de rumbo y eso, como siempre, tiene consecuencias. La revolución, como decia Che Guevara, tiene muchas fases, unas más fáciles y otras más difíciles (...) son alumnos de uma escola, y a ustedes que son nuestros amigos, que la lucha, la revolución, nunca termina; la educación es uma batalha. Sus opciones de formación, bien sean profesores, mecânicos, médicos, operarios, campesinos... también esa opción es una batalha (...) Además de sentir haber cumplido nuestra misión em Angola, además de habermos sentido privilegiados por poder ayudar a nuestros hermanos angoleños em la lucha por el poder popular, volvemos alegres a nuestra pátria sabiendo que Angola tiene jóvenes, en su mayoría, tan empeñados en la causa revolucionaria, porque la causa revolucionaria, sobre todo, es el progreso. Angola está dando los primeiros pasos en outra dirección, pero puede ser una buena direción, todo depende de los hombres, de sus corazones, de la firmeza com que luchen por sus ideales, de la simplicidad que pongan em sus acciones, Del respeto que sientan por los compañeros... Angola ya es uma gran nación y va a crecer más (...) que realmente los niños son las flores de la Humaniadad! Nunca olviden eso... (p.111 - 113).

É um capítulo de despedidas: a tia Dada volta para Portugal, as aulas acabam, alguns alunos se mudam, os professores voltam para Cuba, um dos personagens próximos ao protagonista morre e, também, a guerra civil termina. Tudo isso é captado e descrito liricamente por Ndalu, de forma simples e poética, cheia de imagens, sinestesias e reflexões.

Enfim, Bom dia camaradas é um excelente livro, que se propõe a mostrar a África e a Angola de uma forma diferente da que é mostrada na mídia (somente a pobreza). É um texto que mostra as necessidades do país, a guerra, a violência e o autoritarismo, mas mostra a luta, a busca por identidade, a mudança, a ingenuidade e a esperança do povo; um bom dia através das crianças. É uma obra recomendada a todos os interessados em Literatura (não especificamente a Africana de expressões portuguesas), que buscam conhecer e aprender sobre outras culturas, agora sim, especificamente, a africana (que, aliás, tem muito a ver com a brasileira).

Ndalu de Almeida, mais conhecido como Ondjaki, é um sociólogo, poeta e escritor angolano, nascido em 1977. Vencedor de vários prêmios literários, entre as suas maiores obras estão Os da minha rua (2007) e Os transparentes (2012). Atualmente, mora no Rio de Janeiro.

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é estudante do curso de Letras, em IESA, Santo André – SP.
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