sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Kino no Tabi: uma viagem pela irracionalidade humana

Já há alguns anos, li, numa revista, uma sinopse de um anime chamado Kino No Tabi. Interessei-me na hora e corri para assisti-lo. Como esperado, não me arrependi. Recentemente, assisti à obra novamente e venho aqui, agora, fazer um breve comentário sobre esse excelente e curto animê, o mais filosófico e poético de todos os que eu já vi.

Kino No Tabi é uma light novel (uma espécie de livro, romance curto, geralmente ilustrado no estilo mangá) de Keiichi Sigsawa. Publicada (escrita) em 2000, em 2003 ganhou a sua curta animação de apenas 13 episódios, a qual ficou conhecida como Kino’s Journey: the Beautiful World.

O animê conta a história de Kino, uma viajante, e Hermes, a sua moto falante. Sim, um veículo que entende o que dizemos e responde-nos. Excelente criação para quem viaja. Pouco sabemos da protagonista; tanto a moto quanto Kino falam pouco, muitas vezes a atenção é focada com quem elas interagem, mas, mesmo assim, a dupla consegue cativar tanto os personagens quanto o telespectador.

A menina Kino viaja, então, por vários países, que na verdade são pequenas cidades, algumas mais desenvolvidas, outras nem tanto. Por motivos pessoais (para não se apegar e deixar de viajar), ela não fica mais de três dias em cada país. Cada local possui uma característica e aqui entra o trunfo da obra: a cada estadia de Kino, mais do que os costumes do lugar, ela aprende e nós aprendemos sobre a irracionalidade humana.

(Kino e Hermes)

Comentarei um pouco sobre o primeiro episódio, no qual Kino chega ao “País da dor aparente”. Título forte, episódio também. Ao entrar no país, a protagonista percebe que está tudo muito vazio, as cidades são cuidadas por robôs (isso é comum no universo de Kino), mas humanos “não há” nenhum.

Este fato por si só já nos traz um pensamento: até quando o ser humano será útil? Pior ainda: sem ser útil, precisará e continuará a existir? De qualquer forma, criando robôs superinteligentes para aumentar o seu tempo livre, o seu prazer, o homem cria, também, a sua ruína. (Até lembrei-me do Aldous Huxley: o fim e o maior sofrimento da humanidade virão com a sua busca incessante pelo prazer).

No entanto, no “País da dor aparente” os humanos não morreram ainda, só estão escondidos, cada um em sua casa, cada casa a metros e quilômetros de distância uma da outra. Por quê? Um dos moradores “nos” conta.

Depois de ver algumas pessoas e todas fugirem de Kino, uma delas volta atrás e percebe que não consegue ler os pensamentos da menina, nem ela os dele. Fato raro, isso denuncia que ela não é daquele lugar.

O homem narra a história daquele país: tratando-se de tecnologia, seu povo havia avançado muito, criando diversos tipos de robôs que faziam quase tudo para os humanos. Os cientistas criaram, então, uma máquina líquida, em forma de água. A pessoa que a bebesse conseguiria ler os pensamentos do outro. Por que essa ideia? Para acabar com o sofrimento!

Diz-se que a maioria dos problemas ocorre porque não conseguimos sentir ou imaginar a situação que o outro está passando, além de nossa linguagem muitas vezes ser falha, não conseguir expressar o que pensamos (e isso está relacionado à filosofia do Ludwig Wittgenstein). Logo, se todos bebessem a máquina líquida, entender-se-iam sem falarem uma única palavra.

Foi assim que o morador que conta a história casou-se com a sua amada: ele gostava dela, ela gostava dele, mas ambos nunca tiveram coragem de falar um para o outro. Quando todos os cidadãos beberam a água (pois ninguém queria ficar de fora, ser excluído, não conseguir ler os pensamentos do outro, não ter os seus lidos), ao se olharem, um percebeu o que o outro sentia. Casaram-se.

Passou-se o tempo e os problemas vieram: a mulher não gostava tanto de música quanto o homem, o homem não gostava tanto de plantas quanto a mulher. Nem precisavam falar, um lia os pensamentos do outro. Os dois sabiam que estavam se desgostando, logo, romperam a relação. Pior ainda: as pessoas nas ruas brigavam e se matavam, porque sabiam que tal pessoa tinha ódio por ela, outra queria se vingar, outra estava mentindo etc. O país virou um caos, as pessoas separaram-se umas das outras a uma distância que não conseguiam ler os pensamentos do outro nem terem os seus lidos. Os robôs cuidaram da cidade.

Como consequência, as pessoas foram morrendo, os casais foram rompendo e ninguém mais nasceu. No fim do episódio, quando Kino vai embora, em seu caminho, passa por uma casa que está tocando a mesma música do homem que lhe contou a história: a casa da "ex amada". A música preferida dele, a música preferida da ex-mulher. Um sente a falta do outro, mas o medo das discordâncias, o medo das possíveis brigas, afasta-os.

Embora seja uma ficção, além das reflexões já comentadas aqui, pode-se pensar no quão o episódio é atual quando pensamos em nossa sociedade virtual, na internet, no Facebook ou em outras redes, nas quais ao primeiro sinal de discordância de ideias, pode-se bloquear o outro. Ou, antes disso, antes de adicionar alguém à sua lista de contatos, pode-se ver as páginas que o ele(a) curtiu, as bandas que gosta, os livros que lê etc., e, dependendo do seu gosto, pode evitar ou não o contato com tal pessoa. É quase como ler os pensamentos do outro, evitando o contato, evitando o futuro.

Esse é apenas um dos episódios e esses são apenas alguns pontos que eu comentei, pois os diálogos são quase todos profundos e poéticos. Kino passa por diversos países e situações, que até podem parecer estranhas demais, mas na verdade são sublimes representações de nossa irracionalidade.

Dentre essas situações, temos, por exemplo, o “País dos Adultos”, onde as crianças passam por uma operação para fazerem os seus trabalhos sem reclamar, sempre sorrindo, aceitando o seu “destino”; para eles, isso é ser adulto. Isto é, os adultos são aqueles que renunciam à razão e às suas vontades. Há também o país no qual o trabalho foi abolido, deixado para os robôs, mas por não terem o que fazer, os humanos trabalham gratuitamente, apenas para passar o tempo e estressarem-se propositalmente.

Essa história é contada a outros três homens que não se conhecem e não sabem o motivo pelo qual trabalham, embora estejam numa mesma estrada (física e metafórica). Há 50 anos, cada um deles foi enviado para uma parte de uma ferrovia: o primeiro, para limpá-la, pois foi dito que um dia ela poderia ser usada; o segundo, mais atrás, para desmontá-la, pois disseram que ela não seria mais utilizada; e o terceiro, mais atrás ainda, para refazê-la, pois falaram que daqui a uns anos ela seria usada. Nenhum tem contato com a família, nenhum nunca parou de trabalhar, pois nunca foi enviada uma ordem para isso. Assim continuam o trabalho sem propósito, completando um ciclo e trazendo a metáfora de Sísifo. Porém, sem saberem de si mesmos, querem saber de Kino: “Para onde você vai?” Irônico, poético...

Há outras críticas no animê, feitas aos sistemas políticos, às religiões, às atitudes humanas, às guerras — há um país que é rival de um país vizinho, para ambos deixarem de se matar, resolveram a situação de forma muito simples: não lutarão mais entre si para disputarem territórios: destruirão os pobres povoados ao redor. Os pobres, os outros, serão dizimados; os ricos países rivais, não. Não é muito diferente do nosso mundo.

Já em outro momento, Kino no Tabi traz reflexões sobre a tênue linha entre a subjetividade da criação imaginária, a ficção dos livros, e a realidade objetiva do mundo, suas semelhanças e diferenças, como uma interfere e ajuda a outra; enfim, uma discussão sobre a função dos livros e o poder que eles exercem sobre as pessoas.

É por essas e outras que eu indico o animê Kino no Tabi, desconhecido, curto, porém profundo. A animação conta com 13 episódios, um OVA e dois curtos filmes (de meia hora). Os gráficos/traços podem não ser de primeira qualidade, a trilha sonora pode não ser marcante (embora cumpra bem a sua função), mas o conteúdo é. Outro fator positivo é que a animação não cai no clichê maniqueísta do bem x mal. São situações, contextos e pessoas diferentes; são múltiplos ângulos de nossos atos e de nossa sociedade. "Beautiful World" pode ser uma ironia, depende de que lado olharmos.

Viajemos pela viagem de Kino, pelos países e pelos dilemas que a envolvem, que envolvem os personagens, que nos envolvem e nos devolvem um pouco da razão. 

P.S.: Eu queria comentar sobre vários momentos de todos os episódios, porque são ricos demais, mas só de fazer este texto já me doeu. Duas dores: a de ficar contando parte do enredo e a de ter evitado contar mais... Sinto-me como se tivesse dito nada... 

Um comentário:

  1. Interessante, eu me lembro de ter assistido esse anime em 2017, quando estava na faculdade, bons tempos, foi uma anime bem tranquilo de se assistir, bem filosófico e diferentão, eu gostei muito.

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