sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Um breve comentário sobre o soneto XCI, de Shakespeare

(Introdução copiada de outra publicação que já fiz aqui)

De maneira (muito) resumida: Shakespeare foi/é um dos maiores homens que o mundo já viu, nascido possivelmente em 1564 e falecido em 1616, desenvolveu suas obras (poemas e peças teatrais) no período do Classicismo.

O Classicismo encontra-se dentro de um período histórico chamado Renascimento, que foi uma época de grandes mudanças em todos os âmbitos (sociais, religiosos, filosóficos, econômicos, políticos etc.): iniciam-se as grandes navegações, começa-se a mudança de sistema (feudalismo para "capitalismo"), a igreja católica perde seu poderio, muda-se a visão de teocentrismo para o antropocentrismo  e, principalmente, surge a Imprensa de Gutenberg.

Com a imprensa, muitos livros são publicados; assim, as ideias e obras de filósofos passam a ser conhecidas por muitos. Surge uma nova mentalidade, o homem considera-se em um período iluminado e renascido. Cheio de descobertas, busca diferenciar-se de outrora, agora buscando elementos da cultura grega e romana para adotar em suas obras. Portanto, a arte será racional; valorizarão a ciência, o engenho e os valores da Era Clássica. Que fique claro: de maneira (muito) resumida.

Traduzido por Ivo Barroso, este soneto faz parte de Os Melhores Sonetos (2013) de William Shakespeare (Saraiva de Bolso). Como se sabe, o soneto é composto por 4 estrofes, sendo 2 quartetos (estrofes com 4 versos) e 2 tercetos (estrofes com 3 versos), podendo ser decassílabo (versos de 10 sílabas poéticas) ou alexandrino (versos de 12 sílabas poéticas).  Mas existe um "tipo" de soneto próprio de Shakespeare, também chamado "soneto inglês".

Este modelo possui a estrutura de 3 quartetos e 1 dístico (estrofe de 2 versos); diferente do soneto italiano, o soneto inglês não é feito em estrofes separadas, mas todo junto; apenas os dois últimos versos se diferenciam por estarem 2 espaços à frente dos outros. Mantendo a fidelidade ao livro, eis o poema:

XCI

Uns se orgulham do berço, ou do talento;
Outros da força física, ou dos bens;
Alguns da feia moda do momento;
Outros dos cães de caça, ou palafréns.
Cada gosto um prazer traz na acolhida,
Uma alegria de virtudes plenas;
Tais minúcias não são minha medida.
Supero a todos com uma só apenas.
Mais do que o berço o teu amor me é caro,
Mais rico que a fortuna, e a moda em uso,
Mais me apraz que os corcéis, ou cães de faro,
E tendo-te, do orgulho humano abuso.
   O infortúnio seria apenas este:
   Tirar de mim o bem que tu me deste.

(SHAKESPEARE, 2013, p. 89)

Comentário

Quanto à estrutura do poema, temos um soneto decassílabo, isto é, todos os versos possuem dez sílabas poéticas. Como vimos na descrição acima, o texto segue com três quartetos e um dístico; o esquema de rima, por sua vez, é: ABAB – CDCD – EFEF – GG.

Como é costume dos sonetos, principalmente os da época do Classicismo (ao qual Shakespeare fez parte) e do Barroco (que viria depois), temos o uso da sintaxe invertida (frases inversas, não na ordem direta, como estamos acostumados, principalmente na fala espontânea).

O uso de antíteses (ideias contrárias) nesse poema não ficou muito explícito por meio de palavras antônimas, exceto em “plenas” e “minúcias”, “alegria” e “infortúnio”, “tirar” e “deste”, mas através das ideias: o eu-lírico prefere apenas uma coisa em detrimento de todas as outras, além de comparar os quesitos de que alguns se orgulham.

Quanto ao conteúdo, até que é simples. Há um eu-lírico que diz que muitos se orgulham da classe social a que pertencem; outros, dos bens que possuem; outros, da fortuna; outros, dos cavalos treinados; outros, dos cães; outros, da força física; outros, por acompanharem a moda (e aqui há o adjetivo “feia”, crítica feita pelo dramaturgo às roupas na época) etc., mas que nada disso alegra o eu-lírico. Este a tudo o que foi dito e comparado antes, bens ou habilidades que todos se vangloriam, orgulha-se de ter o amor de alguém.

Com isso, também se pode pensar que ele dá mais valor a algo imaterial, abstrato, do que às coisas terrenas e concretas. É um traço de uma transcendência, algo além, como os classicistas enfocavam (geralmente com substantivos iniciados com letras maiúsculas), por conta da retomada do platonismo.

O que chama a atenção, no entanto, é o fato de o eu-lírico se orgulhar do amor dado a ele por uma pessoa, não propriamente pela pessoa que se dá a ele. Algo diferente do que se vê na maioria das relações, onde um olha para o outro, mas nenhum olha para o objetivo (se há algum) em comum e para aquilo que os une.

É claro que há indivíduos que lamentam pela vida toda a perda de alguém, mas há aquelas que seguem em frente, relacionando-se com outros sujeitos. O que ninguém percebe e que o poeta mostra-nos nesse poema, escrito há séculos atrás, é que, antes de tudo, somos apaixonados e amamos o amor, não somente a pessoa. Não buscamos “alguém”, mas aquilo que ele(a) pode trazer ou criar: os sentimentos, dentre eles, o amor.

Os pares vão se trocando, mas o que procuram ainda é o mesmo: afetos. O eu-lírico sabe disso, por isso teme que lhe tirem o bem causado por alguém, tirem-lhe o amor, tirem-lhe as lembranças, pois lhe tirando essa subjetividade, esse valor transcendente, sobram apenas objetos terrenos e, por isso, passageiros... Sobre as habilidades, idem.

E se o eu-lírico teme que essa substância possa lhe ser tirada, é porque há essa possibilidade... Através de brigas, de discussões, de falta de diálogo, de reciprocidade etc. Então, nem tudo o que é imaterial é eternamente duradouro... Mas, por isso mesmo, é importante e deve ser valorizado.

Vale lembrar que em momento algum o eu-lírico sofre, ele apenas reflete. Os poemas e as obras em geral, na época do Classicismo, refletem a racionalidade, elemento herdado da Era Clássica. Quem demonstrará muito mais do que a razão, mas os sentimentos, o sofrimento, uma subjetividade maior, serão os românticos. Mas isso somente séculos depois. 

Referências

SHAKESPEARE, William. Os melhores sonetos. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. (Saraiva de Bolso)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Kino no Tabi: uma viagem pela irracionalidade humana

Já há alguns anos, li, numa revista, uma sinopse de um anime chamado Kino No Tabi. Interessei-me na hora e corri para assisti-lo. Como esperado, não me arrependi. Recentemente, assisti à obra novamente e venho aqui, agora, fazer um breve comentário sobre esse excelente e curto animê, o mais filosófico e poético de todos os que eu já vi.

Kino No Tabi é uma light novel (uma espécie de livro, romance curto, geralmente ilustrado no estilo mangá) de Keiichi Sigsawa. Publicada (escrita) em 2000, em 2003 ganhou a sua curta animação de apenas 13 episódios, a qual ficou conhecida como Kino’s Journey: the Beautiful World.

O animê conta a história de Kino, uma viajante, e Hermes, a sua moto falante. Sim, um veículo que entende o que dizemos e responde-nos. Excelente criação para quem viaja. Pouco sabemos da protagonista; tanto a moto quanto Kino falam pouco, muitas vezes a atenção é focada com quem elas interagem, mas, mesmo assim, a dupla consegue cativar tanto os personagens quanto o telespectador.

A menina Kino viaja, então, por vários países, que na verdade são pequenas cidades, algumas mais desenvolvidas, outras nem tanto. Por motivos pessoais (para não se apegar e deixar de viajar), ela não fica mais de três dias em cada país. Cada local possui uma característica e aqui entra o trunfo da obra: a cada estadia de Kino, mais do que os costumes do lugar, ela aprende e nós aprendemos sobre a irracionalidade humana.

(Kino e Hermes)

Comentarei um pouco sobre o primeiro episódio, no qual Kino chega ao “País da dor aparente”. Título forte, episódio também. Ao entrar no país, a protagonista percebe que está tudo muito vazio, as cidades são cuidadas por robôs (isso é comum no universo de Kino), mas humanos “não há” nenhum.

Este fato por si só já nos traz um pensamento: até quando o ser humano será útil? Pior ainda: sem ser útil, precisará e continuará a existir? De qualquer forma, criando robôs superinteligentes para aumentar o seu tempo livre, o seu prazer, o homem cria, também, a sua ruína. (Até lembrei-me do Aldous Huxley: o fim e o maior sofrimento da humanidade virão com a sua busca incessante pelo prazer).

No entanto, no “País da dor aparente” os humanos não morreram ainda, só estão escondidos, cada um em sua casa, cada casa a metros e quilômetros de distância uma da outra. Por quê? Um dos moradores “nos” conta.

Depois de ver algumas pessoas e todas fugirem de Kino, uma delas volta atrás e percebe que não consegue ler os pensamentos da menina, nem ela os dele. Fato raro, isso denuncia que ela não é daquele lugar.

O homem narra a história daquele país: tratando-se de tecnologia, seu povo havia avançado muito, criando diversos tipos de robôs que faziam quase tudo para os humanos. Os cientistas criaram, então, uma máquina líquida, em forma de água. A pessoa que a bebesse conseguiria ler os pensamentos do outro. Por que essa ideia? Para acabar com o sofrimento!

Diz-se que a maioria dos problemas ocorre porque não conseguimos sentir ou imaginar a situação que o outro está passando, além de nossa linguagem muitas vezes ser falha, não conseguir expressar o que pensamos (e isso está relacionado à filosofia do Ludwig Wittgenstein). Logo, se todos bebessem a máquina líquida, entender-se-iam sem falarem uma única palavra.

Foi assim que o morador que conta a história casou-se com a sua amada: ele gostava dela, ela gostava dele, mas ambos nunca tiveram coragem de falar um para o outro. Quando todos os cidadãos beberam a água (pois ninguém queria ficar de fora, ser excluído, não conseguir ler os pensamentos do outro, não ter os seus lidos), ao se olharem, um percebeu o que o outro sentia. Casaram-se.

Passou-se o tempo e os problemas vieram: a mulher não gostava tanto de música quanto o homem, o homem não gostava tanto de plantas quanto a mulher. Nem precisavam falar, um lia os pensamentos do outro. Os dois sabiam que estavam se desgostando, logo, romperam a relação. Pior ainda: as pessoas nas ruas brigavam e se matavam, porque sabiam que tal pessoa tinha ódio por ela, outra queria se vingar, outra estava mentindo etc. O país virou um caos, as pessoas separaram-se umas das outras a uma distância que não conseguiam ler os pensamentos do outro nem terem os seus lidos. Os robôs cuidaram da cidade.

Como consequência, as pessoas foram morrendo, os casais foram rompendo e ninguém mais nasceu. No fim do episódio, quando Kino vai embora, em seu caminho, passa por uma casa que está tocando a mesma música do homem que lhe contou a história: a casa da "ex amada". A música preferida dele, a música preferida da ex-mulher. Um sente a falta do outro, mas o medo das discordâncias, o medo das possíveis brigas, afasta-os.

Embora seja uma ficção, além das reflexões já comentadas aqui, pode-se pensar no quão o episódio é atual quando pensamos em nossa sociedade virtual, na internet, no Facebook ou em outras redes, nas quais ao primeiro sinal de discordância de ideias, pode-se bloquear o outro. Ou, antes disso, antes de adicionar alguém à sua lista de contatos, pode-se ver as páginas que o ele(a) curtiu, as bandas que gosta, os livros que lê etc., e, dependendo do seu gosto, pode evitar ou não o contato com tal pessoa. É quase como ler os pensamentos do outro, evitando o contato, evitando o futuro.

Esse é apenas um dos episódios e esses são apenas alguns pontos que eu comentei, pois os diálogos são quase todos profundos e poéticos. Kino passa por diversos países e situações, que até podem parecer estranhas demais, mas na verdade são sublimes representações de nossa irracionalidade.

Dentre essas situações, temos, por exemplo, o “País dos Adultos”, onde as crianças passam por uma operação para fazerem os seus trabalhos sem reclamar, sempre sorrindo, aceitando o seu “destino”; para eles, isso é ser adulto. Isto é, os adultos são aqueles que renunciam à razão e às suas vontades. Há também o país no qual o trabalho foi abolido, deixado para os robôs, mas por não terem o que fazer, os humanos trabalham gratuitamente, apenas para passar o tempo e estressarem-se propositalmente.

Essa história é contada a outros três homens que não se conhecem e não sabem o motivo pelo qual trabalham, embora estejam numa mesma estrada (física e metafórica). Há 50 anos, cada um deles foi enviado para uma parte de uma ferrovia: o primeiro, para limpá-la, pois foi dito que um dia ela poderia ser usada; o segundo, mais atrás, para desmontá-la, pois disseram que ela não seria mais utilizada; e o terceiro, mais atrás ainda, para refazê-la, pois falaram que daqui a uns anos ela seria usada. Nenhum tem contato com a família, nenhum nunca parou de trabalhar, pois nunca foi enviada uma ordem para isso. Assim continuam o trabalho sem propósito, completando um ciclo e trazendo a metáfora de Sísifo. Porém, sem saberem de si mesmos, querem saber de Kino: “Para onde você vai?” Irônico, poético...

Há outras críticas no animê, feitas aos sistemas políticos, às religiões, às atitudes humanas, às guerras — há um país que é rival de um país vizinho, para ambos deixarem de se matar, resolveram a situação de forma muito simples: não lutarão mais entre si para disputarem territórios: destruirão os pobres povoados ao redor. Os pobres, os outros, serão dizimados; os ricos países rivais, não. Não é muito diferente do nosso mundo.

Já em outro momento, Kino no Tabi traz reflexões sobre a tênue linha entre a subjetividade da criação imaginária, a ficção dos livros, e a realidade objetiva do mundo, suas semelhanças e diferenças, como uma interfere e ajuda a outra; enfim, uma discussão sobre a função dos livros e o poder que eles exercem sobre as pessoas.

É por essas e outras que eu indico o animê Kino no Tabi, desconhecido, curto, porém profundo. A animação conta com 13 episódios, um OVA e dois curtos filmes (de meia hora). Os gráficos/traços podem não ser de primeira qualidade, a trilha sonora pode não ser marcante (embora cumpra bem a sua função), mas o conteúdo é. Outro fator positivo é que a animação não cai no clichê maniqueísta do bem x mal. São situações, contextos e pessoas diferentes; são múltiplos ângulos de nossos atos e de nossa sociedade. "Beautiful World" pode ser uma ironia, depende de que lado olharmos.

Viajemos pela viagem de Kino, pelos países e pelos dilemas que a envolvem, que envolvem os personagens, que nos envolvem e nos devolvem um pouco da razão. 

P.S.: Eu queria comentar sobre vários momentos de todos os episódios, porque são ricos demais, mas só de fazer este texto já me doeu. Duas dores: a de ficar contando parte do enredo e a de ter evitado contar mais... Sinto-me como se tivesse dito nada... 

domingo, 15 de janeiro de 2017

Um breve comentário sobre o anime "Now and then, here and there"

Não sou especialista em animês, mas gostaria de comentar sobre um que acabei de assistir.

Há cerca de dois anos, um amigo do Facebook relatou ter assistido ao anime Now and then, here and there e ter gostado muito. Anotei o nome para assisti-lo depois, mas passou-se um ano e eu não o tinha assistido ainda. Prometi a mim mesmo que depois que terminasse de ver o Yu-Gi-Oh, vê-lo-ia.

Terminado de assistir aos 224 episódios das aventuras e dos duelos de Yugi e seus amigos, fui direto ao anime recomendado. O nome original da animação é Ima, Soko Ni Iru Boku, que no Ocidente ficou conhecido como Now and then, here and there (Agora e depois, aqui e lá).

(Shu e Lala Ru)
A obra possui apenas treze episódios, que foram dirigidos por Daichi Akitaro (famoso pelo Fruits Basket) e dirigido por Hideyuki Kurata. O anime foi exibido entre outubro de 1999 e janeiro de 2000. Apesar de curto, não se engane, os temas abordados e a forma como são discutidos são de uma profundidade imensa, proporcionando reflexões por muito mais tempo do que a duração de cada capítulo.

Primeiramente, falemos sobre a abertura, que chega a nos lembrar algumas soundtracks do Hunter x Hunter (Yoshihiro Togashi) clássico — também exibido entre 1999 e 2001 —, mas não apresenta ação alguma, apenas as figuras e os nomes dos personagens.

(Opening de Now and then, here and there)

É preciso dizer, também, que antes de cada episódio, antes mesmo da abertura, lemos a frase “Pois dez bilhões de anos é um tempo tão frágil, tão efêmero... Que incita um carinho amargo, quase desolador...”. Uma reflexão introdutória, tal como é feito em Berserk (Kentaro Miura), mas este último foi exibido em 1997 e 1998.

Pois bem, assim começa Now and then, here and there, com o personagem principal, Shu, um menino elétrico, ingênuo e bondoso, lutando e perdendo num dojo. Em seguida, caminhando pela rua, ele avista alguém em cima de uma chaminé de um local abandonado, observando o pôr-do-sol.

Depois de certa insistência, a menina misteriosa diz se chamar Lala Ru. Neste momento, porém, surge uma luz, alguns soldados e uma mulher, que depois descobrimos se chamar Abelia. Eles são membros do exército de Hellywood, um país-navio de outro mundo (em outro tempo), governado pelo ditador Hamdo. Lala Ru está sendo procurada há tempos, por conta de uma habilidade única que ela possui (depois descobrimos ser o controle da água). Shu, ao perceber que a menina lhe pede ajuda, tenta impedir (a qualquer custo) que ela seja pega, mas ambos são levados à Hellywood.

Neste momento, penso ser um ponto negativo na obra, pois é inverossímil com a realidade. Shu tinha acabado de descobrir o nome da menina, não sabia nem de onde ela veio ou o motivo pelo qual estavam atrás dela. Embora ele tenha um grande senso de justiça, não é sempre que se pula de uma chaminé para outra, correndo risco de vida, lutando contra dois soldados montados em enormes máquinas-dragão, tudo isso tendo como arma apenas um pedacinho de madeira a seu favor... Mesmo depois, ao chegar num mundo desconhecido, o personagem principal nem se lembra da própria família, apenas em salvar a menina recentemente conhecida...

A partir daqui haverá alguns spoilers. Se não quiser sabê-los, assista ao anime e volte — se quiser — depois.

Chegando ao outro mundo (Hellywood), Shu e Lala Ru tentam fugir, mas são perseguidos por vários soldados de Hellywood a mando do ditador Hamdo. Aqui começa o peso da história: todos os soldados são apenas crianças... Crianças que foram retiradas de outras vilas, mas que agora servem a um ditador que, sem que eles soubessem, após tomá-los de suas famílias, destruiu as suas cidades. Então, elas lutam a favor do ditador, que lhes prometeu que quando capturassem Lala Ru, voltariam para suas famílias e vilas... Cegas, elas seguem um sonho; cegas, elas seguem a ideologia (d)e um homem que as oprime...

Não se explica o que “é” o mundo de Hellywood, mas acredito ser algum lugar da Terra no futuro, pois, lá, todo o cenário é devastado por causa das guerras e pela falta d’água. Além disso, há relação dada pelo título do anime: Agora e depois, aqui e lá, que pode demonstrar o presente de Shu e o futuro de Lala Ru e dos outros, o “aqui” do Japão e o “lá” de Hellywood. Ou ainda, pode significar uma reflexão sobre quem somos aqui e agora e o que seremos ou podemos ser mais tarde; outra sugestão, talvez, seja o “aqui” = nós, e o “lá” = o(s) outro(s).

Outro fator não explicado é quem é Lala Ru, de onde veio, porque ela existe, de onde vem o seu poder etc. Só sabemos que ela é considerada uma lenda por alguns povos, pois vive(u?) há milhares de anos; é cobiçada por Hamdo, para que com a água (que o mundo todo quase não tem) ele possa dominar outros lugares e países.

Num dos episódios, Lala Ru diz que sempre que usa o seu poder, sente-se fraca; odeia os seres humanos, porque se ela os ajuda, eles querem “ajuda” (benefícios) sempre, e caso se recuse, passa a ser odiada e perseguida, nunca os contentando completamente. Isso ocorreu e se repetiu durante gerações (lembram-se da frase que inicia todos os episódios? “Pois dez bilhões de anos é um tempo tão frágil, tão efêmero... Que incita um carinho amargo, quase desolador...”). Enquanto isso, Shu tenta convencê-la do oposto, que ainda há bondade no mundo e pessoas boas; ele é um exemplo, outras pessoas que eles conhecem, também.

Voltando à história, Lala Ru é capturada, mas para a infelicidade do ditador, ela está sem o objeto que contém retido todo um “oceano” de água doce. Este fica com Shu, que o perde numa luta contra Nabuca, uma criança líder de uma tropa de Hamdo.

Nabuca é um dos personagens que mais muda conforme a narrativa, pois, no início, ele se mostra sempre eficiente a serviço de Hamdo, matando até amigos (outras crianças) se for preciso, se for uma ordem de um superior; mas quanto mais ele se relaciona e conversa com Shu, mais percebe que não só ele, mas todos os outros estão vivendo uma loucura, algo desumano.

Um dos companheiros de Nabuca, sempre ao seu lado, é Boo. Uma criança mais nova e negra. É preciso ressaltar essa característica, pois não é comum, nos animês, termos personagens negros. Boo é um dos primeiros a ser influenciado por Shu, compreendendo a si mesmo, suas vontades e seus medos; deixando de fazer o que não queria, mas que fazia porque foi imposto, lutando sem querer lutar. Além disso, é interessante notar a leve semelhança entre o personagem de Now and then, here and there com o Oob (o contrário de “Boo”, pois é a reencarnação boa do vilão “Boo”) de Dragon Ball Z (Akira Toriyama). Coincidência (?), ambos são negros.
(Boo e Oob)
Uma outra leve (leve, bem de longe!) semelhança entre personagens que podemos perceber é entre Abelia, a fiel súdita do louco ditador Hamdo, que vive entre seus surtos, ora sendo elogiada, ora sendo xingada e agredida fisicamente, mas sempre submissa (como muitas mulheres ao redor do mundo...), e a Faye Valentine, do anime Cowbow Bebop (Shinichiro Watanabe e Keiko Nobumoto), mas esta última aparenta ser mais jovem e é mais cool, (muito) mais sexy, e também possui uma personalidade muito diferente da súdita de Hamdo — claro, além de obras e desenhistas diferentes, o contexto de Abelia é muito pior.
(Abelia e Faye. Detalhe: escolhi imagens em que as personagens podiam se parecer mais, porque, na verdade, Abelia é mais morena e "feia", enquanto Faye é mais bonita do que a imagem escolhida)

Aliás, os traços de todo o anime são mais simples, sem muitos detalhes. As cores alternam entre o escuro e o claro, cores frias e quentes (tal como as alternâncias do título do anime...). Precisamos atentar-nos às feições dos personagens, porque nos diversos momentos de silêncio, elas falam muito sobre o espírito, a vontade e o passado daquelas pessoas...

Para não me prolongar demais, recomendo a animação por conta de seus temas, que não são muito comuns entre nós, ocidentais, em desenhos. Em Now and then, here and there discute-se violência, ideologia, fascismo, guerras, determinismo, reprodução, vingança, tortura, medo, fome, falta d’água, estupro, aborto, perda de inocência etc., tudo mediado, discutido, vivenciado por crianças. É isso que faz com que a obra seja pesada, uma das mais fortes que já assisti. Se fossem adultos, não teria o mesmo impacto. Por mais que seja ficção científica, é tudo muito real e próximo de nós.  

Contudo, no final, por mais tristes acontecimentos que tenham acontecido, ainda assim, resta uma mensagem de esperança. Ao lado de Kino No Tabi (Keiichi Sigsawa), considero-o o animê mais filosófico que já assisti.


P.S.: Há outros personagens e acontecimentos, além de fatores como trilha sonora, que devem ser refletidos, mas deixo-os para quem assistir. Para quem não viu ainda, esse texto é só uma introdução; para quem já o assistiu, uma conversa.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Uma pequena reflexão #8: Evitando reinventar a roda

Um dia desses, enquanto caminhava, pensei:

— Às vezes, muitas pessoas (e até nós mesmos) passam(os) alguns meses, anos ou a vida inteira, gostando de alguém sem que aquela pessoa desejada ou amada saiba. Será que, neste momento, alguém está gostando de mim e eu não sei?

Todavia, esse pensamento até que é comum e fútil, muita gente já o teve. Minha verdadeira dúvida e indignação vieram depois, quando estendi a questão: 

— Pior ainda: será que alguém me odeia e eu não sei? Será que alguém chegou a me odiar e eu não fiquei sabendo até hoje? Nossa, isso dá um poema!

Guardei a ideia para escrever depois, liguei o computador e acessei alguns sites. Num deles, como faz parte da rotina, ouvi os dois minutos de áudio do filósofo Cortella, numa rádio (é um programinha bem curto). Pois bem, após ouvi-lo, perdi a vontade de escrever o poema.

O motivo é que esse programa quase sempre traz uma frase de algum pensador (conhecido ou desconhecido), mas, bem nesse dia, a citação proferida foi: “Uma das vantagens desse mundo é de se poder odiar e ser odiado sem se conhecer.” Frase do escritor italiano Alessandro Manzoni, escrita na obra Os Noivos.

Por isso não quis mais fazer o poema: um escritor do século XIX já pensou e escreveu a minha ideia sobre ser odiado sem o saber. Melhor ainda: seu fragmento foi além do meu pensamento e de seu tempo.

Hoje, seria muito fácil alguém dizê-lo, por conta das redes sociais, onde as pessoas se adicionam como “amigos” e se excluem com um click, num instante. O excluído ou bloqueado nem sabe da sua situação (ao menos no momento), enquanto o outro, ao bloqueá-lo, faz textos carregados de ódio a seu “respeito”. Mas Manzoni viveu no século XIX...

Além disso, a frase do escritor, dialeticamente, pode trazer uma resposta e solução para o problema do ódio. Pode-se odiar e ser odiado sem se conhecer, mas muitos o fazem justamente por não conhecerem o outro. Sem conhecer as razões e boa parte da vida do próximo, pode-se obter uma interpretação equivocada de tal pessoa e, assim, odiá-la. Às vezes, o ódio é evitado pelo conhecimento, pois geralmente ele é fruto da ignorância.

Por outro lado, há quem conheça muito bem alguém e, por isso mesmo, odeia-o, assim como há pessoas que amam o outro até que possam conhecê-lo pessoalmente e profundamente, que é quando a idealização se quebra.

Eu poderia ficar com raiva (alguns, talvez, até odiariam) do Alessandro Mazzoni (ou de seu texto), mas, não. Pelo contrário, fico agradecido de ter conhecido um de seus pensamentos antes de escrever o mesmo, antes de ser redundante. A saber, até me lembrei de um poema do meu poeta preferido: Mario Quintana. Escreveu o mestre:

Três poemas que me roubaram

Lá pelas tantas menos um quarto eu suspirei num poema:
“Vontade de escrever “Sagesse” de Verlaine...”
Mas o que eu tenho vontade mesmo
É de haver escrito “A pedra no meio do caminho”
a “Balada & canha”, a “Estrela da manhã”,
se
— ó Musa infiel,
não te houvessem possuído antes
Carlos, Augusto e Manuel!...

(QUINTANA, 2008, p. 182)

Na verdade, fico feliz de ter tido, sem saber, a mesma ideia de alguém que eu não conheci. Como disse Schopenhauer (2016): “(...) Com freqüência, escrevi frases que hesitei em apresentar ao público, em função de seu caráter paradoxal, e depois as encontrei, para minha grata surpresa, expressas literalmente nas obras antigas de grandes homens.” (p. 46).

Não veio o poema, mas veio este curto texto, que foi além do que eu havia imaginado. Uma surpresa agradável.

Referências

CORTELLA, Mario Sergio. Uma das vantagens desse mundo é de se poder odiar e ser odiado sem se conhecer. Disponível em: <http://cbn.globoradio.globo.com/comentaristas/mario-sergio-cortella/2016/09/20/UMA-DAS-VANTAGENS-DESSE-MUNDO-E-DE-SE-PODER-ODIAR-E-SER-ODIADO-SEM-SE-CONHECER.htm>. Acesso em: 13. Jan. 2017.

QUINTANA, Mario. Seleção e organização de Tania Franco Carvalhal. Três poemas que me roubaram. In: 80 anos de poesia. São Paulo: Globo, 2008.

SCHOPENHAUER, Arthur. Organização e tradução de Pedro Süssekind. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A relação entre os Engenheiros do Hawaii e o filósofo Albert Camus na música "Nossas Vidas"

Algumas características e influências da banda

Formada em 1984, em Porto Alegre, a banda Engenheiros do Hawaii é uma das maiores bandas de rock do país. Seu fundador e líder, Humberto Gessinger, sempre foi um assíduo leitor de literatura e filosofia, e isso reflete em suas músicas desde o início da carreira.  

Muitas letras do grupo são consideradas complexas por conta de alguns fatores: os constantes jogos de palavras, geralmente paronomásias (palavras de sons semelhantes) e antíteses (ideias contrárias), assonâncias (uso seguido das mesmas vogais) e aliterações (utilização das mesmas consoantes), além de citações implícitas e explícitas de autores (das mais diversas áreas do saber), que denotam as influências dos músicos.

Quem não está acostumado à leitura e à reflexão, na maioria das vezes, imagina que as letras não possuem nexo ou que ele, ouvinte, não consegue achar o sentido das músicas. Por outro lado, quem está mais familiarizado com os temas que a banda discute, logo percebe as influências e os conceitos adotados nas canções.

Uma das leituras preferidas de Humberto Gessinger, ainda durante o curso de Arquitetura (o nome da banda é uma gozação dos alunos de Arquitetura sobre os estudantes de Engenharia), são as obras do escritor e filósofo Albert Camus. No livro Infinita Highway: Uma carona com os Engenheiros do Hawaii (2016), biografia da banda que conta a história do grupo desde o início até o rompimento da formação clássica, conhecida como “GLM” (Gessinger, Licks e Maltz), em 1993, é dito num trecho sobre o segundo álbum do grupo, A revolta dos Dândis:

Gessinger já havia lido O Estrangeiro e A Peste na adolescência, em edições do Círculo do Livro, do qual era sócio. A oportunidade de se adensar na obra de Camus veio com as primeiras idas com sua banda para São Paulo.
- Eu não freqüentava a noite quando viajava, mas ia a todas as lojas de discos e livros que conseguia – recorda o pouco social Gessinger. – Em São Paulo, comprei a coleção completa do Camus, em uma edição portuguesa horrível. Era preciso cortar as páginas para folhear. Mas fiquei fascinado por ele.
A demo do álbum já estava pronta quando Gessinger leu a “A revolta dos dândis”, capítulo de O Homem Revoltado.
- Lembro que quando eu li, fui lá na casa do Maltz e disse: “Bá, velho, o disco tem que se chamar A Revolta dos Dândis” – relembra Gessinger, em bom porto-alegrês. (LUCCHESE, 2016, p. 186-187)

Sobre a música que dá nome ao segundo álbum, conhecemo-la com os versos “Eu me sinto um estrangeiro / Passageiro de algum trem / Que não passa por aí / Que não passa de ilusão”, no entanto, o biógrafo diz que

(...) O nome original da canção era Facel Vega, referência ao modelo do carro no qual estava o escritor Albert Camus quando sofreu o acidente que lhe tiraria a vida, em uma viagem de Provence a Paris – no bolso do escritor francês, restou o bilhete de trem que Camus já havia comprado para fazer o trajeto, mas resolveu não usar, pois aceitou de última hora uma carona do seu editor. A canção tinha originalmente os versos “Eu me sinto um estrangeiro / personagem de Camus”, uma óbvia alusão ao romance O Estrangeiro (...) (LUCCHESE, 2016, p. 186).

Pensando em todo este fascínio que o grupo possuía pelo escritor e pela sua filosofia, buscaremos discutir e compreender um pouco mais profundamente a música Nossas Vidas, contida no primeiro álbum da banda, Longe Demais das Capitais, lançado em 1986. A seguir, para acompanhar a análise e discussão, encontra-se a letra da canção na íntegra. Depois, para cada tema será iniciado um sub-capítulo.

Nossas vidas

A gente faz de tudo
Mas nada faz sentido
Nem as luzes da cidade
Nem o escuro de um abrigo

A gente faz de tudo
Mas nada faz sentido
Nem a existência de uma guerra
Nem a violência do inimigo

Não posso entender o que fizeram com nossas vidas
Não posso entender por que viramos suicidas
Oh! Oh! "O que fizeram com nossas vidas?"
Oh! Oh! "Por que viramos suicidas?"

Eu ando tão vazio, tão cheio de vícios
E o fim da linha, é só o início
De uma nova linha, de um novo mundo
De um dia-a-dia cada vez mais absurdo

Eu já pensei em mandar tudo pro espaço
Eu já pensei em mandar tudo pro inferno
Mas não pensei que fosse tão difícil
Ficar sozinho numa noite de inverno

Não posso entender o que fizeram com nossas vidas
Não posso entender por que viramos suicidas
Oh! Oh! "O que fizeram com nossas vidas?"
Oh! Oh! "Por que viramos suicidas?"

A gente faz de tudo
Mas nada faz sentido.


A consciência de um mal-estar

Na primeira estrofe, quanto à estética, logo percebemos uma das características da banda: o uso de antíteses. Ela aparece com as palavras “tudo”, “nada”, “luzes”, “escuro” (num sentido amplo, poderíamos considerar “cidade” e “abrigo” também).

Já sobre o conteúdo, notamos uma consciência do eu-lírico sobre a inutilidade das nossas ações. Podemos pensar que as elas têm sentido para nós, mas esse sentido é criado e subjetivo, não é algo intrínseco às coisas. Depois, mais à frente, n’outro capítulo, veremos que essa insatisfação cria o “absurdo”.

Desta forma, o eu-lírico lança essas contraposições durante as duas primeiras estrofes. As luzes da cidade podem significar a exposição das coisas/objetos e das pessoas, enquanto o escuro de um abrigo pode ser a reclusão do ser. Ou ainda, num sentido mais amplo, pode ser a objetividade e a subjetividade da existência . É um questionamento e negação de tudo, um niilismo. Tudo equivale a nada para alguém consciente de que tudo se resume ao mesmo (como os Engenheiros explicitariam na música A revolta dos Dândis II, anos depois).

Não faz sentido a guerra nem a violência do inimigo, que batalha sem saber o motivo; que luta, se machuca e morre porque alguém mandou. O inimigo, diferente do eu-lírico, não possui essa mentalidade, não possui consciência de si e de seus atos, por isso se volta violentamente contra o outro, quando deveria se voltar contra o sistema que lhe faz lutar.

"O que fizeram com as nossas vidas? Por que viramos suicidas?"

Camus abre o livro O mito de Sísifo com a afirmativa: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.” (CAMUS, 2016, p. 19). Em seguida, reflete que embora muitos morram porque pensam que a vida não vale a pena ser vivida, porque não há um sentido para a existência, há outros que morrem por um motivo, por um ideal. Enfim, a razão de viver também pode ser uma razão para morrer.

Tal afirmação faz-se necessária porque quase todo suicídio começa com o questionamento, que, em seguida, transforma-se numa negação da vida. A negação, na música, já vimos, é demonstrada logo nos dois primeiros versos, mas agora ela é justificada pelas questões.

Percebe-se o conflito do eu-lírico quando ele mostra não saber se é o causador ou a causa dos atos: no primeiro verso do refrão é dito “o que fizeram com nossas vidas”, isto é, nossas vidas são moldadas por outra(s) pessoa(s). Já no segundo, lê-se/ouve-se: “por que viramos suicidas”. Aqui o sujeito somos nós; lá, são eles. No entanto, implicitamente (talvez, inconscientemente), o eu-lírico já mostrou sermos nós os autores de nossas vidas, pois ele inicia a música com “a gente faz de tudo”.

Com isso, discute-se a liberdade e a responsabilidade do ser. Quando se assume a responsabilidade das nossas ações, negamos a influência de uma força superior. Camus nos diz que “(...) ou não somos livres e o responsável pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso.” (CAMUS, 2016, p. 62).

Claro, aqui entra o paradoxo da onipotência de Deus. De certa forma, até mesmo da sua onisciência também. É porque ou nosso destino já está pré-estabelecido por Deus e apenas seguimos seu curso, justificando a sua onipotência e onisciência, ou possuímos o livre-arbítrio e negamos as duas qualidades do possível Ser superior, não apenas escolhendo sobre o que nos é dado, mas criando novas alternativas. É nisso que entra o Absurdo.

O absurdo em Nossas Vidas

Na quarta estrofe são demonstrados os sentimentos do eu-lírico, a sua percepção e a sua consciência da realidade. O sentimento de vazio, causado por ações repetidas em ciclos. É esse dia-a-dia que lhe causa a impressão e o pensamento (afirmado) de que embora faça de tudo, nada faz sentido. É esse cotidiano que pode fazer com que as pessoas tornem-se suicidas. Levando em consideração o período (1942) e o local (possivelmente a França), Camus diz:

Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. “Começa”, isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo. Depois do despertar vem, com o tempo, a conseqüência: suicídio ou restabelecimento. Em si, a lassidão tem algo de desalentador. Aqui devo concluir que ela é boa. Pois tudo começa pela consciência e nada vale sem ela. (CAMUS, 2016, p. 27)

Tudo se inicia com a consciência, é ela quem faz com que o eu-lírico seja um homem absurdo, alguém revoltado com o seu contexto, com a sua vida, com o seu destino. “Essa revolta da carne é o absurdo” (CAMUS, 2016, p. 28). Para Camus, o absurdo é um divórcio entre a razão humana e a falta de razão do mundo. Mais especificamente: “O que é, de fato, o homem absurdo? Aquele que, sem negá-lo, nada faz pelo eterno. (...) Seguro de sua liberdade com prazo determinado, de sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue sua aventura no tempo de sua vida.” (CAMUS, 2016, p. 73)

É claro que, com isso, ao perceber a falta de sentido nas ações, o sujeito perde as esperanças (o que não significa se desesperar). A falta de esperança quanto ao futuro, por conta da morte inexorável, traz um benefício: a maior atenção para o presente, que se alia àquela responsabilidade do ser. Enfim, a liberdade de ação. Assim, o homem absurdo é um ser que está em luta constante contra o seu meio.

Por que é preciso dizer isso? Porque embora o absurdo da vida possa acabar com o suicídio, com a morte, Camus não é a favor dele — assim como o eu-lírico também não o é, como veremos mais à frente. Para o filósofo, “Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos.” (CAMUS, 2016, p. 21). O suicídio é uma fuga eterna para um problema passageiro. Não é um enfrentamento, mas uma desistência.

Antes de concluirmos, faremos uma pequena comparação entre alguns versos da canção e a história que dá título ao livro de Camus discutido até então.

O mito de Sísifo

Ao ler a estrofe “Eu ando tão vazio, tão cheio de vícios / E o fim da linha, é só o início / De uma nova linha, de um novo mundo / De um dia-a-dia cada vez mais absurdo.”, além de estar explícito o adjetivo “absurdo”, tema brevemente discutido aqui, é impossível não nos lembrarmos de Sísifo, um dos mortais mais inteligentes da mitologia grega.

Sísifo era um homem muito esperto. Certa vez, em troca de uma fonte para a sua cidade, delatou Zeus a Asopo, um deus-rio, dizendo que foi o deus dos deuses quem raptou sua filha. Trato feito. Porém, Zeus, quando soube, furioso, condenou Sísifo ao inferno, pedindo para que um de seus subordinados fosse atrás do indivíduo. Um passo à frente do deus, o mortal enganou o encarregado de sua morte e pediu para sua mulher não o enterrar após o seu falecimento.

Chegando ao submundo, ele implorou para deixarem-no voltar, para que pudesse pedir para a mulher e os responsáveis o enterrarem. Permitiram, mas por pouco tempo. No entanto, o mortal, apaixonado pela vida, fugiu com a mulher e continuou vivendo normalmente. Após ter enganado os deuses de novo, ele é punido para sempre: pela eternidade carregaria uma pedra monte acima, mas quando chegasse ao topo, a pedra cairia novamente e no outro dia seria feito o mesmo. Um processo infinito. Com efeito, os deuses sabiam que “(...) não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança.” (CAMUS, 2016, p. 121).

Sísifo pode ser comparado a todos os trabalhadores, principalmente àqueles que vieram após o fordismo, que trabalham em massa, em linha de produção, sem consciência de que fazem o mesmo movimento todo o dia por todos os dias, sem solução, sem esperança, sem sentido.

No entanto, como o mito não explica tudo em detalhes, fazendo-nos pensar e possivelmente imaginar, Camus reflete sobre quando Sísifo chega ao topo da subida: no que ele pensa? Se, por um momento, o castigado obter a consciência dessa sua ação em vão, ele pode se revoltar e não fazer o seu trabalho. Os deuses teriam de adquirir outra pessoa para fazer essa tarefa. Afinal,

Este mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria a sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo? O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida as mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela durante a descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo. (CAMUS, 2016, p. 123)

Sísifo é um homem absurdo, assim como o eu-lírico da canção. Ambos são conscientes da distância entre os seus desejos e as suas realidades. Ao mesmo tempo, os dois sabem que o destino de suas vidas estão em suas próprias mãos, não nas de outro ser.

Embora Sísifo foi castigado, ele o foi por conta de suas próprias atitudes: o mortal enganou e negou os deuses, seu destino lhe pertence e ele o vive. Ao querer vivê-lo, os deuses são negados novamente. Assim é o homem, assim é o eu-lírico, que sabe que “o fim da linha é só o início de uma nova linha, de um novo mundo, de um dia-a-dia cada vez mais absurdo”, que continua fazendo de tudo, embora nada faça sentido.

Por fim, para comentar sobre a forma dessa estrofe, temos o uso de anáforas (palavras ou frases repetidas), com as palavras “tão” e “de uma nova / de um”. Além disso, pode-se dizer que a repetição das ações do eu-lírico reflete na construção de toda a letra, com suas repetições de versos: “A gente faz de tudo / Mas nada faz sentido”, “Não posso entender o que fizeram com nossas vidas / Não posso entender por que viramos suicidas” (além do verso ainda não citado “Eu já pensei em mandar tudo pro [...]”). Há, também, uma aliteração em [D]: “De uma nova linha, De um novo munDo / De um Dia-a-Dia caDa vez mais absurDo”.

Não ao suicídio, sim à vida e ao absurdo

Finalmente, a última estrofe inédita, na qual percebemos que o eu-lírico não se suicida. “Ficar sozinho numa noite de inverno” pode se referir ao medo de descartar a vida, sozinho. Ato nada condenável, posto que

No apego de um homem à vida há algo mais forte que todas as misérias do mundo. O juízo do corpo tem o mesmo valor que o do espírito, e o corpo recua diante do aniquilamento. Cultivamos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar. Nesta corrida que todo dia nos precipita um pouco mais em direção à morte, o corpo mantém uma dianteira irrecuperável. (CAMUS, 2016, p. 23)

E, também, porque
(...) a experiência absurda se afasta do suicídio. Pode-se pensar que o suicídio se segue à revolta. Mas é um engano. Porque ele não representa seu desenlace lógico. É exatamente o seu contrário, pela admissão que supõe. O suicídio, como o salto, é a aceitação em seu limite máximo. Tudo se consumou, o homem retorna à sua história essencial. (...) (CAMUS, 2016, p. 60)

Assim, o eu-lírico assume de uma vez a sua liberdade de ação, a sua responsabilidade e o seu medo, aceitando o seu destino e a sua vida — irreconciliadamente, não de bom grado, pois o homem absurdo vive lutando. Sabemos que o eu-lírico não desistiu, não se rendeu, porque os últimos versos são os mesmos do início: “A gente faz de tudo, mas nada faz sentido”. Ele prosseguiu, completando o ciclo, assim como Sísifo.

Últimas palavras

Há quem diga que “a ignorância é uma benção”, mas devemos discordar. Na ignorância, Sísifo continua a fazer o seu trabalho; na ignorância, um homem pode se suicidar. Ao contrário, com a consciência, o homem pode se revoltar e, mais do que escolher entre o que lhe foi dado, ele pode criar novos caminhos a serem seguidos.

Com este texto, tentei fazer um pouco mais do que apenas ouvir a música maquinalmente, como a maioria faz. Preciso dizer, também, que apenas comentei sobre o conceito do absurdo (em momento algum pretendi esvaziar o tema — longe disso!). Que essa reflexão sirva apenas como motivação para irmos além, tanto no assunto, quanto nas audições de algumas músicas e artistas que nos permitem tais aprofundamentos.

Mais do que carregar a pedra até o cume, mais do que escutar a música, tentemos contemplá-la(s).


Referências

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. 6 ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016


LUCCHESE, Alexandre. Infinita Highway: Uma carona com os Engenheiros do Hawaii. Caxias do Sul: Belas Letras, 2016.